ASPECTOS CRIMINAIS DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES
Busanelli Advogados
No dia 1º de abril de 2021 foi promulgada a Lei 14.133/2021 que trata do novo regime de licitações e contratos administrativos, com o objetivo de consolidar a tratativa da matéria e assim revogar as disposições das Leis 8.666/1993 (Licitações e Contratos), 10.520/2002 (Pregão Eletrônico), e 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratação – RDC).
Conforme adiantamos noutro artigo, trataríamos dos aspectos penais da novel legislação em artigo específico, o que fazemos neste momento.
De se destacar que a matéria é nova, mas buscaremos trazer algumas reflexões acerca dos tipos penais com base em nossa leitura do tema e apoio de algumas manifestações doutrinárias que já emergiram.
O primeiro ponto de destaque é que a nova lei, adotou postura distinta da antiga Lei de Licitações (8.666/93) ao tratar das matérias penais não em seu bojo, mas sim mediante alteração da redação do próprio Código Penal, mediante a introdução dos 337-E a 337-O.
Tal inovação é salutar, pois assim fica mais evidente a aplicação do regime da parte geral do Código Penal aos delitos ali tipificados, eis que a utilização de leis esparsas, por vezes, tende a justificar uma postura Jurisprudencial que busca implementar “princípios próprios” a determinados delitos, em contraposição ao regime geral que, a nosso sentir, deve sempre ser preservado a fim de se garantir uma unicidade lógica e de coerência do sistema.
O segundo ponto a ser inicialmente destacado é que embora a maior parte da Lei nº 8.666/93 ainda permaneça em vigor por mais dois anos, conforme tratamos no último artigo, no que se refere aos dispositivos penais da nova lei já estão valendo e se aplicam, por disposição expressa, também aos contratos celebrados com empresa pública, sociedade de economia mista e subsidiárias, ou seja, aos Entes regulados pela Lei 13.303/2016.
Não é nosso objetivo neste artigo fazer uma análise profunda de todos os tipos penais (crimes) previstos, mas apontar algumas alterações relevantes acerca do tema.
Pois bem, o anterior crime previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93 (Dispensa ou inexigibilidade irregular) passou a ter nova roupagem no tipo descrito no artigo 337-E do Código Penal.
Nos termos da Lei configura crime “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". Neste tocante, muito embora a nova Lei não tenha mantido o comando que era previsto no parágrafo único do então artigo 89 acima mencionado, segundo o qual previa a punição daquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o poder público, entendemos que a tendencia dos órgãos de persecução (MP e Polícia) e até do Judiciário é de se admitir a coautoria do crime pelos particulares, sob o argumento de que aplica-se o crime a toda e qualquer pessoa que incorra na conduta descrita.
A nosso sentir, contudo, a descrição dos verbos causa alguma dificuldade em se imputar ao particular a prática do delito, salvo se demonstrada alguma forma de efetiva contribuição ativa para a prática do delito.
Sem prejuízo, a ser mantido o entendimento prevalente do Superior Tribunal de Justiça fixado com relação ao antigo artigo 89 da Lei nº 8.666/93, para a tipificação do crime precisará haver ainda dolo específico de causar danos ao erário público e a efetiva caracterização do prejuízo.
Além disso, a pena anteriormente fixada era de três a cinco anos de detenção sendo que com a nova alteração, a pena passou a ser de quatro a oito anos de reclusão. A alteração é relevante pois produz o efeito de impedir a celebração do famigerado acordo de não persecução penal introduzido pela Lei nº 13.964/19, já que a partir desta, o artigo 28-A do Código de Processo Penal impõe que para sua realização a infração seja punida com pena mínima inferior a quatro anos.
Ademais, concordamos com a parcela da doutrina que reputa se se tratar de norma penal em branco (isto é, que demanda precisa ser complementado por outras normas), os dispositivos que preveem as hipóteses de contratação direta deverão ser consultados e bem compreendidos para delimitar o alcance e caracterização do crime. Aliás, é possível que em alguns casos haja a descriminalização de condutas praticadas na vigência da lei anterior. Veja-se, por exemplo, que a nova lei eleva o valor máximo de dispensa de licitação ou mesmo traz alteração no regime de inexigibilidade para serviços técnicos especializados em que houve significativas alterações[1].
Outra relevante mudança a nosso sentir veio com o artigo 337-L do Código Penal, que prevê o crime de fraudar licitação ou contrato dela decorrente, mediante cinco condutas distintas: i) entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais; ii) fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido; iii) entrega de uma mercadoria por outra; iv) alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou produto fornecido; ou v) qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração a proposta ou execução do contrato.
Na mesma toada do dispositivo anteriormente comentado, o novo crime substitui o antigo artigo 96[2] da Lei nº 8.666/93 e aumenta sua pena com o efeito de impedir a celebração do acordo de não persecução penal introduzido pela Lei nº 13.964/19.
Percebe-se de início uma considerável ampliação do tipo penal já que não há mais a limitação do escopo do certame para aquisição ou compra de bens ou mercadorias, sendo que a fraude pode recair sobre todo e qualquer procedimento licitatório, mormente se analisada a conduta descrita no item “v” acima.
A nova redação do tipo penal também excluiu a hipótese de fraude à licitação apenas em razão da elevação arbitrária dos preços, anteriormente prevista, de modo que as condutas atuais tem foco na própria execução do contrato.
Isto traz relevante consequência, na medida em que para configuração do tipo penal deverá haver criteriosa e idônea demonstração (via pericia se possível) acerca da inferioridade da qualidade do produto ou serviço.
Outra inovação relevante foi a introdução do crime de "omissão grave de dado ou de informação por projetista" no artigo 337-O do Código Penal, punido com multa e seis meses a três anos de reclusão e sem correspondência na lei anterior.
A inovação é salutar e tem muito sentido dentro do novo regime jurídico estabelecido na Lei 14.133/2021 que visa privilegiar a fase pré-licitatória de análise e viabilização de estudos e projetos.
O foco do crime é tentar impedir ou inibir a omissão, modificação ou entrega dolosa, à Administração, de informações relevantes ao escopo do certame, sendo que haverá efetiva necessidade de demonstração de as condutas serem passíveis de avaliação de forma previa pelo agente. Destaca-se, ainda que: i) se a infração for praticada "com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem", a pena conta-se em dobro; e ii) é elementar do tipo penal que as condutas sejam praticadas "em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública”.
A nosso juízo, não nos parece aqui que haja possibilidade a punição de terceiros, malgrado já existam posição sustentando o contrário, o que demandará definição, por certo, dos Tribunais.
Por fim, outro aspecto relevante é a exclusão do teto previsto para a multa cominada aos crimes dos artigos 337-E a 337-O do Código Penal, antes limitada a 5% do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação, sendo que, alterando-se o regime anterior a pena passa a seguir a norma geral do Código Penal, estipulada em dias-multa, sendo mantido, todavia, a ressalva de que o valor da pena não pode ser inferior a "2% do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta”.
Fica evidente a tentativa do legislador em melhor sistematizar e recrudescer a resposta penal aos crimes de licitação e contratos administrativos. Sabemos, todavia, que para uma efetiva política criminal de qualidade tais práticas não bastam, sendo necessário a melhoria da conscientização dos agentes e uma boa e eficaz política de compliance interno.
As sanções civis e administrativas, por vezes, têm efeitos mais sensíveis no dia a dia do que a mera criminalização de condutas.
[1] Nos termos da nova lei estes deixaram de ter "natureza singular" e passaram a exigir não apenas "profissionais ou empresas de notória especialização" (como já ocorria na lei anterior), mas também a existência de "natureza predominantemente intelectual".
[2] “Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:
I - elevando arbitrariamente os preços;
II - vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;
III - entregando uma mercadoria por outra;
IV - alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida;
V - tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato:
Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. “